Assistir à sessão do Conselho
Universitário da UEPG nesta segunda-feira, 27 de abril de 2020, após mais de 40
dias de quarentena (!) foi uma experiência que me causou muitos sentimentos e
reflexões conflitantes. Creio que o mesmo ocorreu com todos os outros espectadores,
guardadas todas as diferenças de classe social, papel dentro da Universidade, condição
de gênero, posicionamento político-ideológico e tudo o mais.
O mais interessante de uma
reunião do CoU transmitida pelo Facebook foi permitir notar que duas discussões
ocorriam paralelamente: a dos conselheiros e a dos espectadores, através dos comentários
da rede social. Alguém poderia dizer que se trata de um cotejamento entre a
democracia representativa do Conselho, delegada, indireta, e a democracia
direta das redes sociais, em tese mais autêntica e sem mediações. Não tão rápido!
Quem participou da discussão por meio da rede social na verdade é quem
conseguiu garantir uma conexão de internet com o mínimo de qualidade e
aparelhos que permitiram essa interação, em geral condições acessíveis apenas da
pequena burguesia para cima, na escala social. Ou seja, grande parte dos que falavam
em nome dos que não têm condições de acesso à internet não eram efetivamente quem
não tem tais condições, mas seus representantes também, dentro da pequena
burguesia que tem maior sensibilidade social. Onde conseguiram seus mandatos,
por que atos e documentos os que não têm condições de acesso delegaram sua voz
a seus colegas da pequena burguesia, não ficou claro ainda. Evidentemente não
podemos excluir a possibilidade de que os sem condições de acesso tenham
conseguido de alguma forma obter tais condições para participar também desta
sessão on-line.
A primeira constatação
que tiramos desta situação é que a pandemia destruiu – ainda que
temporariamente – a UEPG presencial que conhecíamos. A única UEPG que se ergue
dos escombros do bombardeio que o vírus corona despejou sobre os tempos normais,
no momento, é a UEPG virtual. O ataque do vírus corona, por ordem de gravidade:
mata pessoas, deixa pessoas doentes, coloca o sistema de saúde sob ameaça
constante de colapso, freia a economia, prende grande parte da população em
suas casas, produz doenças mentais diversas e, por fim (mas neste caso, não
menos importante), coloca o presente em uma espécie de pausa. Quanto mais
prolongada é a pausa do presente, maior a angústia de todos nós, que passamos a
desejar cada vez mais ardentemente que as coisas voltem ao normal. É melhor que
aceitemos logo que as coisas não vão voltar ao normal, entendido aí o normal
como o modo que vivíamos antes da pandemia.
Por isso a demanda tão urgente de nos voltarmos para o futuro, em vez do
passado e, olhem, sou historiador e serei cobrado por essa frase, provavelmente
também de formas não muito gentis, mas é exatamente pelo fato de ser um
profissional que lida com as representações do passado e sua circulação social
que me obrigo a escrevê-la: precisamos focar no futuro. Obviamente temos que aproveitar
o conhecimento do passado, mas ele não é o nosso futuro. Aliás, quando é que
foi? Nunca, né? (exceto para conservadores renhidos).
É a partir dessa reflexão
sobre o normal que perdemos no ataque do vírus que classifico grosseiramente
dois polos do debate no Facebook concomitante à reunião do CoU. Em geral, as
posições mais conservadoras sobre o que fazer parecem estar sustentadas sobre o
pressuposto de que em algum momento (de preferência mais cedo) voltaremos ao
normal, e por isso não é o caso de fazer nada em especial neste momento. Por
outro lado, muitas das posições em favor de que a UEPG inove e garanta alguma
forma de atividade educacional denunciam uma postura bastante individualista:
meu direito, minha formatura, minha necessidade. Isso não quer dizer que entre
os que querem manter tudo como está (parado) existam apenas compromissos
altruístas, e entre os que querem mudar o estado de pausa existam apenas posturas
egoístas. Mas é notório que conservadores egoístas podem usar peles altruístas,
e geralmente para os progressistas altruístas existam apenas peles egoístas
disponíveis. O fato é que não devemos centrar o debate por identidades,
identificações ou julgamentos dos debatedores, mas nos fatos e argumentos, e
por um motivo muito simples. Quando o debate ocorre pautado por identificações,
os argumentos ficam em segundo plano: tendemos a carimbar um argumento pela
posição de quem o colocou, e aí buscamos razões para apoiá-lo ou atacá-lo
conforme nos identificamos ou não com quem argumentou. O argumento em si, nesse
caso, fica às moscas. Chegamos até esse pântano cognitivo porque nossa vida pessoal
e pública foi recondicionada pelas redes sociais, que pela natureza do seu
modelo de negócio, acabam por impor essa lógica. O debate em questão foi marcado
por esse fenômeno: objeções a propostas são tratadas como se refutassem
terminantemente a proposta, quando na verdade deveriam ser aceitas como
argumentos, uma vez assimilados, para aperfeiçoamento da proposta. Pelo
contrário, ideias, fatos e argumentos são entendidos e usados como pedras e
paus em alguma confrontação paleolítica. É o oposto de como a ciência deveria
funcionar.
Temos urgência de responder
se os lados do debate nas redes sociais – que de algum modo repercutem o debate
dentro do Conselho – são de verdade antagônicos e mutuamente excludentes. Por
exemplo: quem é favorável a retomar as atividades de ensino precisa que
os que são contrários sejam obrigados a retomar? Ou: quem é contrário a
retomar as atividades de ensino precisa que os favoráveis sejam proibidos
de retomar? O ideal e o normal seria ter uma decisão que vigorasse igualmente para
todos. Mas, para quem já esqueceu, o normal e o ideal foram bombardeados pelo
vírus corona e se encontram arrasados, enquanto combates corpo a corpo continuam
ocorrendo entre os escombros.
Sob os escombros do nosso
normal e das alternativas ideais, cada vez mais gente vai entendendo que o
passado não voltará. As chances de a pandemia ter destruído para sempre o que
era normal antes dela são muito mais prováveis que o contrário. Diante disso,
esperar para que as coisas se “normalizem” não é uma opção razoável, embora muitos
se agarrem firmemente a ela, em negação da realidade. O futuro diante de nós
não é animador. O que já temos de certeza é que viveremos/ vivemos uma profunda
depressão econômica, cuja superação levará anos. Ou seja, qualquer possibilidade
de economia de recursos passa a ser crucial, e mais: não se sai sustentavelmente
sozinho da depressão econômica, saímos todos, ou ninguém sai por muito tempo. O
que não temos certeza, mas sabemos ser possível, é que pode ser necessário
retomar futuras vezes o isolamento social, por conta de novas ondas de contaminação.
O pior cenário é que o vírus possa reinfectar os já atingidos pela COVID-19, ou
que outras pandemias ocorram na sequência. É para algum desses cenários – nenhum
deles bom, nenhum ideal, nenhum normal como antes – que todos temos que nos preparar,
inclusive a Universidade Pública, da qual a nossa sociedade tanto depende, inclusive
para o combate à doença e para a reconstrução daquilo que for destruído pela
pandemia.
“Estamos em guerra”,
costumamos ouvir frequentemente, uma guerra contra um inimigo invisível, não contra
outros humanos, mas que precisa desesperadamente da colaboração e da solidariedade
interna e entre os países. Essa união e essa racionalidade nos foram
terrivelmente arrancadas pelo modo de funcionamento das redes sociais, que
impuseram sua lógica à política e nos legaram, no Brasil e nos Estados Unidos
entre outros, líderes incapazes de lidar bem com um desafio destas proporções. Infelizmente,
o próprio presidente do Brasil comporta-se não como nosso líder nesse conflito,
mas como um agente infiltrado a serviço de uma potência estrangeira, no caso a potência
da infecção pelo SARS-COV-2 e a disseminação da COVID-19. Ou seja, já começamos
mal nessa guerra. Mas desde o século XX sabemos que guerras mundiais exigem o
comprometimento de toda a população, sem exceções. A linha de frente desta vez é
composta pelos profissionais da saúde, que arriscam suas vidas no front da
nossa espécie. Precisam de todo tipo de apoio que os demais puderem fornecer, e
por isso se forma uma linha de abastecimento. Em ambas as linhas, a
Universidade tem um papel fundamental, tanto no fornecimento de efetivos quanto
em sua reposição, por meio da formação de novos profissionais, mas também no
estudo do inimigo e no desenvolvimento de todo tipo de arma que pudermos utilizar.
Ou seja, quanto mais as universidades puderem funcionar – sempre fora do ideal,
já sabemos – melhor para todos. Na retaguarda, o comprometimento de todos com
as atitudes e os recursos necessários é fundamental, e a ausência disso
equivale a deixar a linha de frente e a linha de abastecimento jogados à
própria sorte. Para que a retaguarda possa cumprir sua função, é necessário
construir um “novo normal” em que possa ser feito tudo é que é possível fazer
diante das condições que nos foram impostas, para gerar novas condições que nos
coloquem em patamares sucessivamente superiores aos que temos hoje, pois além
de enfrentar e vencer essa guerra, precisaremos de tudo isso para a recuperação
do pós-guerra. Por dois motivos, cada um de nós precisa superar suas
dificuldades e fazer tudo o que estiver ao seu alcance. O primeiro motivo é por
uma questão psicológica: em isolamento social, na quebra da rotina, e com a falta
de tarefas que precisemos cumprir, tendemos a nos concentrar nos problemas e
nas más notícias, e a total inatividade em nossas funções normais é uma ampla
rodovia para a depressão, pânico, apatia, ou, em termos militares, para a baixa
da moral. O segundo motivo é que quanto mais permitimos que nosso presente continue
pausado, mais demoraremos para sair dessa pausa, principalmente em termos
econômicos.
Mas... e os problemas para
retomar as atividades? E os problemas que a retomada das atividades vai causar?
Essas perguntas são imprescindíveis e devem ser acolhidas com toda a seriedade,
e com todo o entusiasmo e sinceridade em encontrar saídas. Os principais problemas
identificados até aqui para a retomada das atividades didáticas por meio de
atividades não-presenciais são: a) estudantes e, em menor escala, professores
sem condições de acesso de boa qualidade à internet; b) estudantes e
professores cuja rotina foi alterada, na pandemia, de modo que estão cuidando
de outras pessoas e não dispõem de tempo ou condições psicológicas para dar
continuidade às atividades acadêmicas; c) estudantes e professores sem
condições psicológicas para dar continuidade às atividades acadêmicas que não
pelas razões em b; d) precariedade geral do acesso via redes para todos os
envolvidos [1].
Antes de qualquer outra
coisa, é necessário reafirmar incansavelmente que toda solução que se encontre
agora não vai – nem pode, nem pretende – repor nenhuma condição do antigo
normal. É preciso lembrar também que não se criará nenhum processo ideal, até
porque mesmo antes da pandemia, não tínhamos condições ideais: o ideal é uma
meta que sempre se afasta quando nos aproximamos. Mesmo nos tempos antes da
pandemia, as soluções aplicadas para determinados problemas podem levar a novos
problemas que terão que ser resolvidos a seu tempo. Para dar um passo adiante,
esperar que a solução apresentada para um problema complexo e multifacetado o
resolva totalmente é o caminho mais seguro para ficar parado. Outro caminho
seguro para a imobilidade é esperar que se conceba e resolva de antemão todos
os novos problemas que ainda não surgiram quando implantar uma solução possível
para um problema atual complexo.
Por tudo isso, a discussão
não deveria ser mais sobre SE vamos ou não começar a aplicar medidas que
permitam a continuidade das atividades didáticas por meio de novas tecnologias
de informação e comunicação, mas COMO e QUANDO. Isso porque mesmo se a saúde
pública permitir a retomada das aulas normalmente, temos que estar preparados
para novas ondas de isolamento social, e para a depressão econômica que vem por
aí.
O Conselho deve trabalhar
no sentido de uma resolução para tempos de emergência e calamidade pública e,
portanto, para situações de excepcionalidade, exclusivamente. Deve ser firmado
um compromisso entre todos os participantes de que essas normativas não valem
para tempos que não sejam de exceção. Isso é necessário para evitar as
preocupações razoáveis sobre se não haveria um movimento para transformar a
exceção em regra e prejudicar os sujeitos da universidade em favor dos governantes
ou de seus financiadores/ lobistas. Outro princípio a nortear essa resolução é
o de não gerar prejuízo permanente para nenhum dos envolvidos. Assim, deve
ficar garantido que as pessoas – professores, alunos, técnicos – que não
puderem/ não quiserem aderir às medidas tomadas, possam ter alternativas factíveis
ao mesmo tempo ou em tempo posterior às ações desenvolvidas. Da mesma forma,
para os que quiserem se envolver neste tipo de empreitada, deve ficar claro,
juridicamente, que não farão jus a nenhum benefício adicional, e que renunciam
a qualquer litigância com a UEPG por conta das atividades, horários e condições
diferentes que tenham que cumprir. Deve ser previsto, portanto, um termo de
compromisso assinado pelos envolvidos.
Em termos de seus
conteúdos, a resolução precisa definir de antemão, para este e para todo
momento de crise posterior, um recurso unificado de comunicação com a comunidade
universitária, com credibilidade institucional para a transmissão de todas as
orientações oficiais e válidas. Uma página especial de internet da
Universidade, replicada com o mesmo conteúdo nas várias redes sociais, onde as
várias instâncias – reitoria, conselhos, setores, departamentos e colegiados de
curso, possam estabelecer orientações unificadas e válidas para os seus
respectivos públicos. Para isso, as formas de contato com os membros da
comunidade universitário precisam estar constantemente atualizadas, e isso deve
estar previsto na resolução, com atribuição de competências e responsabilidades.
É desejável suspender o critério de frequência para as atividades de ensino
durante o momento de crise, e estabelecer que para cada atividade realizada por
um canal de EaD, seja criada pelo menos uma alternativa de acompanhamento para
quem não tiver acesso ou tiver acesso com menos qualidade, a critério e sob
orientação dos colegiados de curso. O professor precisa ter a garantia de que
não precisará desenvolver o mesmo trabalho quando a pandemia estiver superada,
daí a necessidade de planejar atividades alternativas, gravar as aulas para
acesso posterior etc. Os que não puderem acompanhar as atividades deverão ser
acolhidos em atividades alternativas, como por exemplo Planos de Acompanhamento
Especial definidos pelos docentes e acompanhados pelos Colegiados.
São necessárias parcerias
com a comunidade, por exemplo com as emissoras de rádio e TV, especialmente a
TV Educativa de Ponta Grossa, para que liberem horários para transmissão de
aulas, e gestões junto à ANATEL e operadoras de telefonia para conceder acesso
gratuito a uma página da UEPG que centralize os conteúdos e orientações para
aulas. Os contatos em Curitiba e Brasília devem ser demandados neste sentido. Aos
que estão em regiões que não tenham sinal, pode-se gravar todo o material do
curso em pen-drives para distribuição quinzenal em alguns polos na região, e fazer
campanha de empréstimo ou doação de notebooks em condições de uso para que
possam assistir, ler, mandar retornos etc. Voluntários podem ser mobilizados
para fazer este material chegar aos colegas. A mobilização dos estudantes será fundamental,
com comitês de representantes de turma que fiscalizem e colaborem para que as
aulas cheguem de algum modo a todos os colegas. Em determinados casos, pode ser
razoável que alunos com dificuldades de acesso e permanência acima da média
fiquem alojados temporariamente na UEPG e tenham acesso a laboratórios de
informática, restaurante e alojamento, garantidas todas a medidas de higiene e
distanciamento social. Enfim, os favoráveis à retomada precisam ter claro que
se trata de um grande esforço, que não vai ser resolvido apenas “cobrando das autoridades”,
mas também com apoio voluntário e solidariedade com os colegas que não tenham
as mesmas condições.
Se todos se
responsabilizarem por todos, como deve ser, é possível que todo o setor de
ensino da UEPG consiga ir além da sua contribuição mínima, que é interromper as
atividades, para uma contribuição mais afirmativa, que é dar continuidade à formação
de recursos humanos, seja aqueles que são desesperadamente necessários agora,
seja aqueles que serão necessários muito em breve, na reconstrução do país. Paz
entre nós, guerra ao vírus corona.
[1]
Durante a transmissão do CoU, aconteceram vários travamentos. Apressadamente
alguns deram o vaticínio de morte de qualquer proposta de atividade didática on-line,
esquecendo que aquela transmissão, especificamente, teve centenas de acessos ao
mesmo tempo. Já fizemos reuniões de departamento pelos mesmos servidores de
internet nos últimos dias, com cerca de 30 pessoas conectadas, que funcionaram
razoavelmente bem do começo ao fim.