sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Guia politicamente incorreto... Maria Ligia Coelho Prado

 Reproduzo abaixo a resenha que a historiadora Maria Ligia C. Prado faz do "Guia Politicamente Incorreto da América Latina". Quando vi o livro lá na Verbo, pensei em comprá-lo, mas resolvi que não queria financiar esses autores. Eu detestaria parecer corporativista, logo eu, mas a crítica a esses contrabandistas de história falsificada já estava atrasada, e a resenha da Maria Lígia é muito bem vinda. Que venham outras do gênero, para que a história não seja impunemente colonizada por filibusteiros do mundo editorial.

Resenha do Guia Politicamente Incorreto da América Latina

Maria Ligia Coelho Prado*

O principal objetivo deste Guia, nas palavras dos autores, é derrubar do pedestal o que chamam de “falsos heróis latino-americanos”. São “falsos” porque deles se construíram injustas imagens laudatórias. O livro quer mostrar a “outra” face desses homens, indicando seus equívocos, fraquezas e incapacidades. Cada capítulo está dedicado a uma das personagens que será objeto de críticas, de Simón Bolívar a Che Guevara.
Sem dúvida, a decisão dos autores de centrar o texto nas figuras dos “heróis” ou dos assim denominados “grandes homens” é bastante decepcionante. A desmistificação de heróis – “falsos” ou não, latino-americanos ou europeus – foi tarefa já exaustivamente cumprida pelos historiadores. Para que o passado histórico seja compreendido, é indispensável que se faça uma cuidadosa análise dos pensamentos e ações de homens e mulheres envolvidos na complexa trama de questões sociais, políticas, culturais, religiosas e econômicas.
Para construir seus argumentos e ordenar sua narrativa, Narloch e Teixeira se apóiam em muitas citações retiradas da bibliografia e indicam suas fontes em notas de rodapé, conferindo ao livro um pretenso ar de respeitabilidade acadêmica.
Todos os capítulos trazem afirmações polêmicas, simplificações oportunas e interpretações discutíveis que mereceriam ser esquadrinhadas. Repetem a equivocada estratégia de pinçar frases a esmo, retirando-as do contexto histórico, atribuindo-lhes valores positivos ou negativos sem as devidas explicações e restringindo, portanto, sua compreensão. Diante de tantas possibilidades para o exercício da crítica, escolhemos analisar dois procedimentos utilizados pelos autores para sustentarem seus pontos de vista.
O primeiro deles é o de se apropriar de uma fonte bibliográfica contestada e corroída por suspeitas e apresentá-la ao leitor brasileiro como fidedigna e isenta. O capítulo sobre Salvador Allende, que é particularmente controverso e recheado de afirmações refutáveis, exemplifica tal utilização imprópria. Narloch e Teixeira, no item 6 do capítulo, retiram informações do livro do chileno Víctor Farías, Allende, antissemitismo e eutanásia, para acusar o falecido presidente de racista e anti-semita e para associá-lo a certas práticas nazistas. Essas rotulações já foram fortemente denunciadas e refutadas no Chile, inclusive com a publicação de documentos que demonstram os equívocos de todas essas acusações.
         Para a mais clara compreensão do manuseio das fontes pelos autores,  vamos nos ater à questão do racismo e anti-semitismo. Sobre esse tema, Narloch e Teixeira reproduzem trechos retirados do livro de Farías, que supostamente teriam sido transcritos da tese Higiene mental e delinqüência, que Allende escreveu para obter o título de médico em 1933. As frases atribuídas a Allende estão carregadas dos piores preconceitos sobre judeus, ciganos, árabes, italianos, homossexuais e alcoólatras. Entretanto, a Fundação Presidente Allende, da Espanha, para refutar as diatribes de Farías, publicou a tese original de Allende, que também está disponível na internet. O que se constata é que Allende estava, no trecho mencionado, reproduzindo frases de Lombroso – ele afirma isso literalmente - numa discussão sobre suas teorias, como ainda era usual no começo dos anos 1930. A conclusão de Allende sobre as possíveis relações, defendidas por Lombroso, entre origem étnica e delito criminoso, é a de que não havia dados precisos para demonstrar tal influência “no mundo civilizado”. (p.115 da tese) Frase esta que não aparece na transcrição de Farías e do Guia. Como se sabe, o bom historiador e o bom jornalista devem checar suas fontes, estudá-las, compará-las, garantir sua credibilidade e depois transcrevê-las com correta isenção.
         O segundo procedimento refere-se ao mecanismo de utilização de uma fonte bibliográfica de prestígio para referendar ou legitimar conclusões bastante diferentes daquelas defendidas pelos autores do Guia. O capítulo sobre Pancho Villa, líder da Revolução Mexicana, é, neste sentido, exemplar. A intenção explícita de Narloch e Teixeira é demonstrar que Pancho Villa não era anti-americano e que não foi um Robin Hood latino-americano. (p.239) Para alcançar seu objetivo, os autores fazem referências a trabalhos de historiadores de onde retiram informações pontuais e dados específicos. Entre eles, um se sobressai, pois é citado em 27 das 47 notas de rodapé: Friedrich Katz, historiador da Revolução Mexicana, homem de convicções esquerdistas e autor de uma monumental biografia de Pancho Villa. Nela, Katz salienta o lugar de Villa no movimento revolucionário e procura fugir das lendas e da construção do mito. A trajetória pessoal e política de Villa é analisada integrada ao contexto social do México. Assim, existe um fosso entre a abordagem e conclusões de Katz e aquelas encontradas no Guia. A voz de autoridade de Katz é utilizada apenas para conferir credibilidade aos argumentos do Guia.
         Para terminar, uma observação de caráter geral. Os autores apresentam no Guia uma visão desdenhosa sobre a História da América Latina. Só se entende essa exacerbada desqualificação se ela for pensada como a outra face do real desconhecimento dos autores sobre o assunto.


*Maria Ligia Coelho Prado é Professora de História da América Latina da USP

8 comentários:

Caroline Pacievitch disse...

Obrigada por tornar a resenha acessível. Preciso mostrar isso a um amigo.

Felipe Augusto Sviaghin Ferri disse...

Tenho certeza que esse amigo da Carol gostou da resenha... (-:
Bom, eu já comprei o "Guia politicamente incorreto da história do Brasil", mas antes de vendê-lo a um sebo posso pelo menos tentar lê-lo com um pensamento mais crítico.
Acredito o objetivo dos autores ao escrever obras demonizando os heróis latinoamericanos é atrair leitores com obras sensacionalistas, o que não se pode negar que funciona, já que todos gostam de uma boa fofoca. É mérito deles é conseguir atrair atenção popular a leituras históricas, embora seus métodos não sejam os mais louváveis...

Jessica Leme Santos disse...

Adorei professor! Não aguento qdo as pessoas vem me questionar sobre história e citam este tipo de livro legitimando suas perguntas idiotas.

Memórias das Assembleias de Deus disse...

Livros como esse acredito eu (confesso que não o li ainda) são de uma certa forma, usados para se desacreditar de toda outra forma ou modelo, ou alternativa para o que esta ai implantado. A publicidade que uma obra dessa ganha, parece que é um desejo de certas elites de legitimar o modelo político e econômico atual.

L.F.Cerri disse...

É bem o contrário, Mário Sérgio, a ideia é dar estofo, contexto e justificativa para o pensamento conservador, já que o mesmo está acuado por um contexto brasileiro e latinoamericano em que o pensamento político tem fugido à ortodoxia conservadora, projetando outros valores e referências, que eles consideram importante combater.

Luiz Felpe Moraes disse...

Muito boa crítica, foi exatamente essa a impressão que tive quando li o livro. Além de simplista e de estar centrado apenas em falsos heróis, pregam a existência de uma verdade absoluta e universal.

André Astete disse...

Lí os dois livros, sobre o Brasil e a AL. Não esperava que não tivessem vulnerabilidades ou equívocos. Mas é importante reconhecer que imagens muito mais inacuradas de certos "heróis" estão nos livros de história. Os livros fazem contraponto, e isso já é válido, e questionam aspectos de tais personagens que são ideologicamente reforçados no presente. Só para dar um exemplo: Simon Bolívar, ao derrotar o vice reino do Peru, resolveu desmembra-lo em dois países, o que arruinaria as duas partes mutuamente dependentes. O que era conhecido como Alto-Peru não passava de uma região mineira pobremente organizada em torno de La Paz. Pois Bolívar impôs que se tornasse um país, escreveu uma constituição para ele e forçou para que o país fosse batizado em sua homenagem: Bolívia...Porque glorificar um indivíduo por coisas como isso? San Martin, o outro libertador era muito mais político e ético em suas ações, mas a maioria dos brasileiros nem reconheceria seu nome. Bolívar, aparentemente, era mesmo um crápula, apenas isso, e é necessário dize-lo, mesmo que desagrade pessoas que escrevem livros didáticos.

José Alexandre disse...

Bom pra pensarmos sobre a história que o povo lê e compra. Aliás não só o povo, mas até profissionais da área. Há alguns uma professora, que me parece ser hoje coordenadora de história do NRE-PG, indicou um desses dois guias numa oficina para formação de professores.

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