sábado, 5 de abril de 2014

1964, revolução ou golpe?

(publicado no Jornal da Manhã de 31/03/2014)
50 anos depois, o tema continua polêmico. É importante ter em conta o que os pesquisadores das ciências sociais e da história produziram, e evitar repetir acriticamente os discursos políticos da época. Em 1964, o conceito de revolução (transformação profunda das relações políticas, sociais e econômicas) não explica o acontecido. O conceito de golpe, por outro lado, é adequado para explicar o que ocorreu: um movimento articulado de ruptura da ordem institucional que substituiu a direção política do país.
Está superado na academia a ideia de que o golpe se fez para evitar o comunismo. Não havia chance concreta de vitória comunista. O Partido Comunista Brasileiro era então pendente para o reformismo, e a guerrilha urbana e rural só aconteceu na prática a partir de 1969, após o ato de fechamento do regime e suspensão dos direitos civis, com setores dissidentes do PCB e outros. O fantasma comunista novamente foi uma solução retórica dos golpistas para a legitimação ideológica do regime, que na prática que foi útil para superar impasses da industrialização, da ascensão dos movimentos populares e sindicais e para rever a inserção do Brasil na economia internacional de forma conservadora, isto é, eliminando a democracia e retardando a inclusão dos mais pobres de forma protagonista no sistema político e no mercado.
A historiografia sobre 1964 teve diversos momentos: um, nos próprios anos 70, se dedicava a entender estrutural e economicamente a natureza do regime, época em que predominaram os sociólogos, e houve mais colaboração com estudiosos dos países vizinhos. Nesse momento, “populismo” e sua crise eram os elementos-chave de interpretação. No final dos anos 70 e anos 80, pesquisas com base no acesso a extensa documentação demonstraram o caráter conspiratório do golpe, assim como provaram a participação norte americano nele, com espionagem da C.I.A., financiamento dos opositores a Goulart e manobras da marinha americana no litoral brasileiro.
Recentemente, as pesquisas indicam outros fatores na explicação do regime, como a radicalização política em 1964 e a fraqueza do tema da democracia tanto na agenda da direita quanto no da esquerda, de modo que os agentes políticos não aceitaram nenhuma concessão em nome da governabilidade. Um dos pesquisadores mais importantes é Carlos Fico, para quem o golpe teve como causa imediata a ação de parte dos militares no calor dos acontecimentos, e não diretamente de uma conspiração. O que houve, sim, foram ações de vários anos de desestabilização dos governos “populistas”, promovidas pela imprensa conservadora, lideranças da Igreja, setores empresariais e outros agentes conservadores. Em geral, um consenso na historiografia atual é que o regime tem que ser pensado como uma ditadura civil-militar, pois resulta de uma ação de personagens dessas duas esferas, não cabendo a responsabilidade apenas aos militares envolvidos.
Não tem suporte acadêmico a ideia de que a ditadura brasileira foi mais branda que as de outros países do continente. É inegável que, proporcionalmente, a ditadura brasileira produziu menos vítimas do que a ditadura argentina, por exemplo, mas isso não se deve à brandura do regime. O que ocorre é que a ditadura brasileira foi “diluída” por dois fatores: tempo e espaço. Pelas dimensões do Brasil, os atos de repressão, exceto à guerrilha do Araguaia, ocorreram principalmente nas grandes cidades, e junto à classe média urbana. Era um Brasil rural e com uma enorme classe camponesa. Com isso, na maioria das famílias e na maioria das cidades, que eram pequenas ou médias, não se sentiu diretamente a repressão. Em termos de tempo, uma longa ditadura acabou significando que nos seus primeiros anos, e nos seus estertores, a liberdade política foi um pouco maior e a repressão foi bem menor. Esses fatores juntos criaram uma sensação de menor dureza do regime, mas quando se trata de terrorismo de estado (como é o caso), não há graus de dureza ou brandura: sempre os atingidos são jogados numa situação de desespero e morte, sem terem a quem recorrer, e portanto não se pode falar em “ditabranda”.

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