segunda-feira, 14 de junho de 2010

O ensino da história da ditadura para militares

Reproduzo abaixo reportagem da FOlha de São Paulo repercutido na lista do GT de Ensino de História e Educação da ANPUH. Que as cúpúlas militares queiram ter sua própria visão enviesada da História, vá lá, mas que queiram educar as próximas gerações nesse libelo autoritário sem qualquer sustentação nas ciências da História e da Educação, não dá para admitir.

Livro do Exército ensina a louvar ditadura
* *Colégio militar usa material de história com perfil diferente do indicado
pelo MEC*


* ANGELA PINHO*
DE BRASÍLIA


A história oficial contada aos alunos dos 12 colégios militares do país
omite a tortura praticada na ditadura e ensina que o golpe ocorrido em 1964
foi uma revolução democrática; a censura à imprensa, necessária para o
progresso; e as cassações políticas, uma resposta à intransigência da
oposição. É isso que está no livro didático "História do Brasil -Império e
República", utilizado pelos estudantes do 7º ano (antiga 6ª série) das
escolas mantidas com recursos públicos pelo Exército. Nelas, estudam 14 mil
alunos, entre filhos de militares transferidos ou de civis aprovados em
concorridos vestibulinhos. De cada aluno é cobrada uma taxa mensal de R$ 143
a R$ 160, da qual estão isentos os que não podem pagar. Mas 80% das despesas
são custeadas pelo Exército.


As escolas militares poderiam utilizar livros gratuitos cedidos pelo
Ministério da Educação a todas as escolas públicas. Mas, para a disciplina
de história, optaram pela obra editada pela Bibliex (Biblioteca do
Exército), que deve ser adquirida pelos próprios alunos. Na internet, o
preço é R$ 50, mais um caderno de exercícios a R$ 20. O Exército afirma que
o material "atende adequadamente às necessidades do ensino de História no
Sistema Colégio Militar".


O livro de história mais adquirido pelo MEC para o ensino fundamental, da
editora Moderna, apresenta a tomada do poder pelos militares como um golpe,
uma reação da direita às reformas propostas por João Goulart (1961-64). A
partir disso, diz a obra, seguiu-se um período de arbítrio, com tortura e
desaparecimentos, em que a esquerda recorreu à luta armada para se
manifestar contra o regime.


Já a obra da Bibliex narra uma história diferente: Goulart cooperava com os
interesses do Partido Comunista, que já havia se infiltrado na Igreja
Católica e nas universidades. Do outro lado, as Forças Armadas, por seu
"espírito democrático", eram a maior resistência às "investidas
subversivas". No caderno de exercícios, uma questão resume a ideia. Qual
foi o objetivo da tomada do poder pelos militares? Resposta: "combater a
inflação, a corrupção e a comunização do país".


*TORTURA*


A obra não faz menção à tortura e ao desaparecimento de opositores ao regime
militar. Cita apenas as ações da esquerda: "A atuação de grupos subversivos,
além de perturbar a ordem pública, vitimou numerosas pessoas, que perderam a
vida em assaltos a bancos, ataques a quartéis e postos policiais e em
sequestros". A censura é justificada: "Nos governos militares, em
particular na gestão do presidente Médici [Emílio Garrastazu, 1969-1974],
houve a censura dos meios de comunicação e o combate e eliminação das
guerrilhas, urbana e rural, porque a preservação da ordem pública era
condição necessária ao progresso do país."


As cassações políticas são atribuídas à oposição do MDB (Movimento
Democrático Brasileiro). "Embora o governo pregasse o retorno à normalidade
democrática, a intransigência do partido oposicionista motivou a necessidade
de algumas cassações políticas", diz trecho sobre o governo Ernesto Geisel
(1974-79). Para o historiador Carlos Fico, da UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro), o livro usado nos colégios militares é problemático tanto
do ponto de vista das informações que contém como pela forma como conta a
história.


"O principal motivo do golpe foi o incômodo causado pela possibilidade de
que setores populares tivessem uma série de conquistas." Mas, para Fico,
mais grave ainda é a forma como o livro narra o período, com uma "história
factual" carente de análise, focada apenas na ação dos governos. "Trata-se
de uma modalidade desprezada inclusive pelos bons historiadores
conservadores", avalia.


*ANÁLISE*


*A "história oficial" e os argumentos interessados*


*HÉLIO SCHWARTSMAN*
ARTICULISTA DA *FOLHA*
Permanece aberta a questão do estatuto epistemológico da história. Definir
se ela é uma ciência e o grau de objetividade de seus juízos envolve uma
controvérsia que dificilmente vai se resolver antes do fim dos tempos.


Numa linha mais pragmática, pode-se afirmar que é do confronto entre
diferentes concepções de historiografia e de como ela se relaciona com os
fatos que se forja a visão que cada época elabora de seu próprio passado.
Assim surge a história oficial, que sempre poderá ser revista de acordo com
novas interpretações, numa demonstração de que às vezes nem o passado é
imutável.


Essa frouxidão epistêmica, típica das chamadas ciências do espírito, está
longe contudo de significar um vale-tudo. Por mais difícil que seja depurar
a ideologia constante de qualquer discurso, enquanto a linguagem conservar
algum valor, haverá narrativas mais ou menos precisas e relatos mais ou
menos honestos.
É perfeitamente razoável debater, por exemplo, os rumos que tomava o governo
de João Goulart. Pode-se também discutir o alcance e o significado social do
chamado Milagre Brasileiro. São questões que comportam legitimamente
interpretações mais à esquerda ou à direita.


A argumentação politicamente interessada, porém, através de eufemismos,
omissões ou falsificações, pode dar lugar a crimes de lesa-historiografia. É
o que faz o livro adotado pelo Exército quando deixa de informar que a
"Revolução levada a efeito, não por extremistas, mas por grupos moderados e
respeitadores da lei e da ordem" derrubou pelas armas um regime
democraticamente eleito -o que, em bom português é golpe de Estado.


Ainda pior, a obra simplesmente deixa de mencionar que setores ligados às
Forças Armadas se valeram de tortura para desbaratar os grupos de esquerda,
o que, independentemente das intenções dos militantes, era proibido pelas
leis editadas pelo próprio regime militar. Em 2007, setores da mídia
conservadora protestaram com razão contra os excessos esquerdistas de um
livro didático, "Nova História Crítica", que foi distribuído para algumas
escolas pelo MEC. Será curioso observar como reagirão agora ao mesmo erro
com sinal invertido.


*OUTRO LADO*


*Não há juízo de valor, afirma comandante *


DE BRASÍLIA
O coronel Silva Alvim, comandante do colégio militar de Brasília, o maior do
Exército, afirma que as escolas militares abordam "apenas o fato histórico",
sem juízos de valor sobre o regime militar. Questionado sobre a omissão dos
torturados e desaparecidos no livro do 7º ano, diz que se trata de um tema
proibido. "Dentro desse culto aos valores e tradições do Exército, esse tipo
de assunto [tortura e desaparecidos] nós buscamos não tratar. Até porque, no
âmbito do Exército brasileiro, essas questões não são permitidas", diz.


Curiosamente, no ensino médio, a apostila adotada pelo colégio militar de
Brasília, feita pelo sistema Poliedro, fala em "ditadura" e "tortura". Mas
"não enfaticamente", responde o coronel ao ser indagado sobre a diferença de
abordagem. Questionado sobre o livro, o Centro de Comunicação Social do
Exército afirmou apenas que a linha didático-pedagógica da obra, adotada
desde 1998, "atende adequadamente às necessidades do ensino de História no
Sistema Colégio Militar". O Ministério da Defesa disse, via assessoria de
imprensa, que o teor do livro "será levado ao conhecimento das autoridades
competentes".

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